
O Brasil já foi mais terrivelmente cristão. Dados do Censo 2022 revelam um país ainda adepto em peso do cristianismo: 83,6% da população com 10 anos ou mais se declaram católicas ou evangélicas, os dois grandes galhos dessa aba religiosa.
No total, eram 86,8% no último levantamento demográfico, de 2010, e 89,3% na virada do século. No primeiro recenseamento de todos, em 1872, beiraram os 100%.
O antropólogo Rodrigo Toniol, da UFRJ, consta primeiro o óbvio, que “o Brasil segue sendo um país esmagadoramente cristão”. Ainda assim, aponta, esse bloco “perdeu quase 12 pontos percentuais nas últimas quatro décadas, num processo de erosão lento, mas contínuo”.
Depois de católicos (56,7%) e evangélicos (26,9%), o terceiro maior quinhão desse recorte compartilhado nesta sexta (6) pelo IBGE são pessoas que não se identificam com uma crença em particular. “Os ‘sem religião’ continuam a ser o grupo mais dinâmico proporcionalmente, impulsionados por jovens urbanos e escolarizados”, diz Toniol. “Com quase 10% da população, eles indicam um processo gradual de desinstitucionalização da fé no Brasil.”
Essa parcela corresponde a 9,3% da população recenseada. Poderia ser ainda maior, se levarmos em conta critérios aplicados em outros anos pelo IBGE. Para 2022, o Censo considerou apenas brasileiros com mais de 10 anos.
Em levantamentos prévios, muitas crianças acabavam engrossando os números dos “sem religião”, diz o demógrafo José Eustáquio Alves. Filhos, por exemplo, de pai e mãe com fés distintas —digamos: ela evangélica, ele católico. Seus pais informavam, portanto, que ela ainda não possuía uma crença definida.
Enquadrar-se nessa categoria não significa ser ateu ou agnóstico necessariamente. O rótulo acomoda muito mais gente, como brasileiros que se dizem espiritualizados, mas não se filiam a uma instituição religiosa. São maneiras mais individualizadas de se relacionar com o sagrado.
“Os sem religião expressam duas recusas”, afirma Toniol. “A recusa às instituições religiosas e a recusa aos mediadores tradicionais do sagrado —sacerdotes, pastores, pais de santo. Preferem caminhos espirituais que dispensam essas instâncias de autoridade e ilustram o que se convencionou chamar de ‘crer sem pertencer’.”
A fração populacional que dispensa estruturas religiosas formais é impulsionada por jovens urbanos e escolarizados. Na faixa em que são mais populares, entre 30 e 39 anos, chegam a 21%. Depois começam a decrescer em proporção —3% dos brasileiros acima de 70 anos se reconhecem assim.
São em maioria brancos (39% deles), sudestinos (metade do grupo) e com alta taxa de ensino superior completo (20,5%). Gente como Fabiana, a empresária que “crê sem pertencer”.
Ainda passam longe de refletir um país tão plural, mas integram o que o antropólogo Toniol define como “uma transformação silenciosa e profunda”: o desapego a vínculos religiosos tradicionais.
Assim a empresária Fabiana Batistela, 48, toca sua vida. Busca passar ao filho Luiz, 5, o lema que toma para si: “É uma questão de respeito, aceitar todas as religiões, mas poder não seguir nenhuma. Eu tô criando meu filho nessa base, não impor nenhuma a ele. Até outro dia ele não sabia quem era Jesus, mas sabia quem era David Bowie.”
Batizou o filho “por pressão da família”, diz ela, que nasceu numa família de classe média descendente de italiano. O catolicismo veio por osmose, afirma. Estudou numa escola de freira e fez até a primeira comunhão. Ouviu que precisava da crisma caso quisesse se casar de branco na igreja, o que nunca quis.
Ainda que se declarasse em sua maioria católica, a família não via problemas em “misturinhas” ecumênicas, em “namorar com outras religiões, como se tudo fosse de Deus”, conta Fabiana.
Como usar branco no fim de ano (herança de religiões de matriz africana) ou o que chamavam de “macumbinha para conseguir mais dinheiro, por exemplo”. Também havia a ala crente. “Um dos meus tios chegou a ser pastor numa igreja evangélica tradicional. Minha tia-bisavó não cortava o cabelo, era uma velhinha com aquele coque gigante.”
“Nunca soube responder ‘você acredita em Deus?’”, admite Fabiana. É difícil “passar por cima” de um monte de coisas negativas que ela credita à Igreja Católica. “Prefiro não ter que escolher sabe? Porque ao mesmo tempo é isso, não posso não acreditar, não tem como, com toda a criação que tive. E não acreditar… Parece que você fica abandonado no mundo, né? Tipo, ‘e agora, quem poderá me defender?’”
Foi no Censo 1940 que o grupo no qual Fabiana se vê pontuou pela primeira vez. Os “sem religião” eram então 1,4% do povo. Demais religiões, fora as cristãs católica e evangélica, representavam 0,9% dos brasileiros na época. Hoje ampliaram esse espaço para 7,1%.
